sexta-feira, 5 de março de 2010

Vencer o medo

Hirta de medo. E com razões para isso foram assim as primeiras horas da “Preta” cá em casa.
A Xana foi sozinha buscar a “Preta”, eu bem queria partilhar o momento mas o trabalho não permitiu e não queríamos adiar. A “Preta” tinha passado as primeiras 24 horas fora do posto da BP num local que não conhecemos. Pelo que diz quem a colocou lá, para a salvar de um destino, pior não tinha as condições mínimas para que o bicho lá ficasse.
Combinou-se a “recolha” de novo no posto que foi a casa da “Preta” durante uns 8 anos.
Este relato tem que ser feito pela Xana e é por isso que escrevo esta actualização apenas em meu nome. Porque não pude partilhar tudo, e pelo que se segue.

Hirta de medo. Foi como encontrei a “Preta” ao chegar a casa. A Xana tomou todas as precauções possíveis. Para começar, tínhamos que aproximar a “Preta” das duas cadelas. Os gatos tiveram que ficar longe, temporariamente detidos numa das divisões da casa que estas coisas têm que ser feitas gradualmente.
Mas curiosamente a “Preta”não tinha assim tantas razões para ter receios. A nossa cadela mais velha claro que fez questão de mostrar quem manda cá em casa. Nunca foi de grandes amizades com outros animais e fez sentir isso à “Preta”. Mesmo assim a curiosidade rapidamente acabou por ultrapassar os ciúmes. A cadela mais nova, essa sim muito ciumenta mas nada agressiva, depressa baixou a sua crista para querer brincar com a “Preta”. Mas a agitação das duas era tanta que a “Preta”, sem saber interpretar os sinais, só queria defender-se. As cadelas rodeavam-na, cheiravam, saltavam, ameaçavam, tocavam e a “Preta” tinha mesmo muito medo. Convém saber que qualquer uma das nossas cadelas pesa mais ou menos o dobro da “Preta”, e com a altura correspondente.

Ainda na garagem, para não “chocar” logo com os territórios das outras, uma cama improvisada foi rapidamente tomada como um ponto seguro, um local onde talvez pudesse relaxar, e as cadelas aceitaram esse metro quadrado de território.
Neste momento já a Xana a tinha limpo cuidadosamente e aplicado o Advantix por precaução justificada, como seria de esperar.
Encurtando umas horas longas em que estivemos sempre alerta. A “Preta” foi de facto a única das três que chegou a rosnar, só e apenas quando se sentia muito ameaçada e encurralada, o estritamente necessário para sua defesa.

Mas nunca fez um gesto agressivo, nunca tentou invadir um território que não era o seu. Entre as três nunca houve uma dentada, nunca uma pata foi colocada com força suficiente para ferir. Houve muita desconfiança, muito pelo eriçado, e medo, nada mais.
E em menos de 24 horas alguns pequenos milagres. O primeiro passeio no jardim em comum, depois a primeira ida à rua, e foi assim que vimos o que suspeitávamos apenas. A “Preta” é um animal muito obediente, podíamos dizer mesmo muito “bem educado”. Na rua, sem trelas, onde estamos sempre a controlar para que não pisem zonas perigosas onde possam ser atropeladas, as nossas cadelas obedecem aparentemente sempre por medo de uma reprimenda, ou na esperança de uma recompensa nem que seja uma festa.

A “Preta” obedece pura e simplesmente, por vezes até parece que as suas pernas querem seguir outra direcção, mas obedece. Vem ter connosco, espera, senta, a ordem
é obedecida, logo, sem mais. E nunca fez “nada” dentro de casa que não devesse. Sabe o que é dentro, o que é fora. Num dos momentos de maior pânico pensámos que ia urinar dentro de casa, e estávamos prontos para isso, mas nem assim aconteceu. Sempre lá fora, sempre durante os passeios.

A “Preta” chegou na segunda-feira ao fim do dia. Na terça tudo estava a melhorar de tal maneira que ao fim do dia decidimos arriscar, iam comer todas juntas. Até então tinham comido em separado mas a coisa estava a ficar suficientemente pacífica para arriscar-mos. A partilha da refeição pode ser um dos momentos mais perigosos, mas como felizmente aqui não há necessidade de lutar pelo seu quinhão o ritual funcionou sem acidentes.

Só um. E não envolveu as cadelas.

Depois da ração, depois do biscoito, dei comigo sozinho com a “Preta”, na cozinha. Olhou-me fixamente. Rolou uma longa, única, funda, lágrima naquela pequeno focinho. Veio do olho esquerdo, só do esquerdo. A Xana chegou e como sempre limpou a lágrima do bicho. Pensem o que quiserem. Para mim nesse instante a “Preta” soube que aquela não era mais uma viagem. Soube que esta era a casa dela para o bem e para o mal. E eu tive a certeza que teimava em sair cá de dentro. Foi a única lágrima que lhe vi, antes ou depois.

A partir daqui, foi a primeira viagem de carro e logo com a cadela mais velha. A ida ao veterinário que se impunha, as vacinas, as comidas novas, as rotinas cá de casa.

E os gatos. Muito curiosos de início, tinham que testar a “Preta”. Houve uns “frissons” como seria de esperar. Mas rapidamente evoluíram para uma quase indiferença mútua. A “Preta” já consegue atravessar o corredor se a chamarmos e estiver um gato no meio. O gato também já a deixa passar.

Passa grande parte do tempo a dormir, é normal em situações de stress. Mas agora dorme mesmo, enquanto nas primeiras horas só queria passar despercebida sem deixar de estar em permanente alerta.

Confesso que nunca imaginei que a transição fosse tão pacífica. Até acreditava que a “Preta” tentasse tudo para se integrar, nem sei bem porquê, mas acreditava. Não sabia é como ia ser recebida.
Agora já passeia descontraída, está a aprender os seus limites na rua, os territórios que não queremos que ultrapasse. Quando saímos de casa em “bando” para uma dos passeios diários, com um de nós, ou com os dois, vê-se que quer fazer parte da “matilha”.
E agora não temos dúvidas. A “Preta” faz parte da “matilha”.

Estou muito curioso sobre a forma como se vão dar todos daqui a uns meses, cães e gatos.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Contra a lógica

Contra toda a lógica, seguindo o coração, a "Preta" está em nossa casa.
Ainda passou 24 horas com pessoas que tinham a melhor das intenções, mas segundo as próprias, não tinham as condições necessárias. Quase num acto de desespero tentaram, e conseguiram, que outros tomassem decisões erradas.

É óbvio que durante esta luta pensámos muitas vezes em adoptar a “Preta”. Mas temos três gatos (uma macho e duas fêmeas) e duas cadelas. Qualquer pessoa com bom senso sabe que não é a melhor das ideias introduzir uma cadela adulta neste ambiente.
Os bichos partilham a nossa casa, o nosso espaço, o que poderia trazer problemas acrescidos.

Foi sempre a pensar no bem estar de todos estes animais e no da “Preta” que não a quisemos trazer para casa.

Sobretudo continuamos a pensar que a “Preta”, tinha o direito de continuar na sua casa de oito anos, onde era acarinhada, no território que conhecia como seu.

A BP não entendeu assim, e provavelmente a lei dos homens está do seu lado. Nem nos passava pela cabeça uma batalha jurídica por abandono do animal. Oficialmente não tem um “dono”. Neste país seria uma guerra perdida, e antes da derrota nos tribunais já a “Preta” teria desaparecido. Para os nosso princípios morais foi abandono puro e simples.

Não vamos mudar o nome destas páginas, na prática a “Preta” foi expulsa, porque assim o quiseram.

Ao que parece, e isto foi uma conversa que a Alexandra ouviu que não lhe era dirigida, ainda quiseram saber se a “culpa” desta campanha era dos funcionários. Não meus senhores, a culpa não foi dos funcionários, que muito choraram a saída da “Preta”. Choraram mesmo. A culpa é nossa.

Tentámos o diálogo. Falámos várias vezes, por telefone e pessoalmente com o novo gerente do local. Conseguimos falar uma vez com uma pessoa com responsabilidades acima do gerente da BP de Caneças que nem o seu contacto teve a coragem, ou a liberdade de nos dar. E nada.

Passámos a outras acções. O nossos protesto/pedido para que a “Preta” ficasse na sua casa de sempre teve que ser feito num formulário na Web. A BP não fornece endereços de correio electrónico no seu site, ao contrário do que faz qualquer empresa que siga as boas práticas, com boa fé. Recebemos apenas a resposta automática, o recibo enviado pela máquina. Tudo o que não se deve fazer aos clientes.

E pedimos ajuda aos amigos. Tentámos usar uma linguagem que não ferisse susceptibilidades na BP, mas apelámos de facto a que fizessem sentir o protesto. Esperamos bem que as pessoas da empresa, porque há lá pessoas, tenham sentido bem a indignação que causaram. Tudo o que não se deve fazer aos clientes.

Não sabemos se a “Preta” se vai adaptar. Não vou aqui descrever as singularidades de cada um dos outros mas a coisa pode não ser fácil. Em abono da verdade, as primeiras horas foram promissoras. O bicho ia morrendo de medo, mas as cadelas, apesar da muita agitação e barulho não foram verdadeiramente agressivas. Os gatos ficam para outra fase que estas coisas têm que se fazer com muita calma.

Esperamos que a “Preta” tenha ganho um novo lar, tudo faremos para isso. Esperamos um dia vê-la brincar com os outros animais cá em casa, mas é um longo e doloroso processo.

Para já temos pena que no meio disto tudo todos tenham saído a perder.

A BP perdeu pelo menos dois bons clientes mas isso, a julgar pelas não respostas, parece que é irrelevante.

Os funcionários e clientes de Caneças perderam a “Preta”.

A “Preta” perdeu a sua casa.